Diálogos da Esfinge

Inicio aqui meus diálogos com a esfinge, afinando a escuta com o oráculo interior. Serei pergunta e resposta. Por vezes o silêncio, a lucidez e a loucura. Trocarei de papéis e de mistérios. Assim, caminho em direção à esfinge, despindo-me vagarosamente dos meus medos. E vou nua. Ao pé da esfinge, deposito o gesto e a intenção. Ergo os olhos e encaro o que me devora e não me apavora, nesse momento, essa fenda no abismo. Corro o risco da decifração. Eis-me aqui, nesses diálogos...

segunda-feira, julho 17, 2006

Com a chave do enigma no bico



Um pássaro aprisionado na moldura, com metade da palavra curiosidade no bico e a inscrição de uma cantiga infantil como a chave do enigma: “Curió lá na gaiola fez um buraquinho/Voou, voou/E a menina que gostava do bichinho/Chorou, chorou”. Do outro lado, também na moldura, um leme, símbolo supremo dos Navegantes. Sempre a esfinge, me rondando, como um bicho faminto à espreita, me propondo leituras no âmago da minha fome no labirinto das perguntas certas e das respostas de silêncio intocado. Transponho portais onde cruzo com o totem da esfinge e em algumas vezes o oráculo chega a tocar o meu ombro, já envergado pela agonia dessas sombras possessivas. O muro sombrio sustenta a fragilidade de uma mangueira que brota na pedra, numa ausência ressentida de luz. Toco a planta, chego a arrancar ramificações secundárias e vejo as raízes periféricas. Recuo. Sinto medo de afetar a vida que insiste em afirmar-se no ambiente hostil. Adio o momento, com todas as minhas incertezas. E o oráculo sussurra atrás da minha orelha uma exigência da esfinge. Não ouço, mas vejo claramente a fonte do enigma, o pássaro com metade da palavra curiosidade no bico, aprisionado na moldura, e o leme estático (vermelho, azul e branco) – não sei precisamente a razão, mas me remete à figura de um pícaro, que zombeteiramente dá cambalhotas ao redor das minhas tentativas de entendimento. O leme, o controle que não está em minhas mãos, mas preso na moldura como a chave do enigma que me atropelou em cheio. Sei que não fui eu quem naveguei. Mas acordei em mar aberto. A chave do enigma. O leme que desnorteou a minha vida e me deixou à deriva no universo da esfinge. Sussurra oráculo, sussurra...

Cida Almeida – Goiânia, 17-7-2006.

quarta-feira, junho 28, 2006

De sombra e escritura


Um tropel invade a noite que deixei estendida na janela. Recolho os passos que chegaram sem as rédeas de quem os domavam. Afago o animal exausto e sinto a carícia entre pêlos e suor, deslizando quente dos meus olhos. Espicho a escuta longe, longe, onde a esfinge espreita minha solidão e o vazio ecoando na sala. De novo, tropeço no enigma das palavras.
- Sinto muito sua falta!
- Não consigo viver sem você.
Dois punhais atravessados na minha garganta, estrangulando um grito medonho, que se perdeu de mim.
Estanco. Paraliso.
Mas VEJO:
O bloco das palavras escorregadias. Aperto os olhos e afino o olhar, até enxergar as duas frases petrificadas dentro do meu instante. A esfinge as deixa ali, sob meus olhos ardidos, como um enigma aberto à claridade seca do dia.
As palavras são cinza e cintilantes. E repousam absolutas em uma folha de papel de superfície tingida de preto. No topo da página, leio o que me fere, realçado pelo fundo negro, como se fosse o avesso de um carbono, de um filme, um negativo. Negro, carvão, luto, morte.
Mas o papel está rasgado. Como se um oráculo caprichoso quisesse ir mais fundo para me cutucar com vara curta. Provocativamente rasgou um pedaço da folha, até à base do incômodo texto. E a tira que falta forma uma letra invertida, onde vejo um V.
Claramente percebo a mensagem. A letra invertida suprimindo o V de Verdade ou o ato de VER, o verbo. Dobro a folha ao meio. Mas na hora não percebo o que se desenhou depois na minha mente. Ao dobrar a folha, o V assume a claridade do branco, vazio, sem fala, inerte.
Triste, a esfinge se repete. Já não me conta novidades. Decifrei o que não quis, o que já tinha me engolido por dentro, devorado nas entranhas e à flor da pele, todos os meus dias perfeitos. Dou chutes nas perguntas certas. Atiro-as para longe de mim e tento acertar o olho da esfinge. Não preciso mais das respostas nesse caminho de torturas, tonturas e loucuras.
Abro novamente a janela. E deixo entrar o que chegou depois de tudo... O meu ESPANTO!

Cida Almeida – Goiânia, 28-6-2006.

quarta-feira, junho 21, 2006

A esfinge no limite da faca





Emergiu plena de silêncio, a esfinge. O OLHO boiou na superfície do lago, trazendo novamente o corpo inadequado do mistério onde afoguei minhas palavras, a razão e todos os dias cegos. Os dias cegos que insistem na luz que vibra no enigma da esfinge. A luz cativa no olho da esfinge que vaza a minha alma, a loucura desbotada na janela. Dias frouxos e de esquecimento, desistência na beira do olho fundo, a fome que já me devorou inteira e eu vomito com desdém… A esfinge chegou novamente, de um jeito diferente, onde o que era alucinação virou lucidez e calma, como um cristal devolvendo ao sol o brilho que cega. Há muito arranquei meu olho sadio e atirei na fogueira das palavras em labaredas, onde queimava meu corpo e a minha alma. A chama da verdade ficou suspensa como a surpresa de um dia estranho em que perdi mais do que a inocência da fé. A FACA quente, limpa e afiada da verdade sumiu das minhas mãos, como uma aparição se apagando dentro de uma paisagem de gelo. Descobri que o gelo também queima. Pior que a queimadura de fogo, o gelo necrosa e a ferida não fica na casca. Que pulsação estranha nesse (re) encontro com a esfinge. A que sempre esteve dentro da aparente ausência, o OLHO crispando na minha nuca, espreitando por todos os lados e me esperando no dobrar do próximo passo. E os meus passos ficaram cautelosos e escorregadios. Olho para o chão onde imponho meus passos e recolho as vibrações. Sei que a esfinge é poderosa, mas não consegue me devorar inteira. Então, tenta me dividir e confundir. Às vezes fico solta, exposta como uma isca. Mas ela é astuta. Fareja e me refuga. Ela sabe que sou bicho. Um bicho ferido que não conseguiu arrancar dos flancos a lança e que se recusa a lamber a ferida. Mas OLHO no OLHO, uma porção ínfima de humanidade devorada dentro da esfinge vacila e só EU sou capaz de captar. E isso a deixa frágil e todos os meus medos me fortalecem. Na beira do lago e do fundo do OLHO onde emerge novamente a esfinge, espreito o movimento das águas, tateio de olhos fechados, mas sem cegueira, a ondulação das linhas da superfície que dará forma ao monstro. Levito e deixo a esfinge entrar nesse espaço aberto pelas palavras afogadas, cianóticas e inchadas. As palavras inertes que tento inflamar com o oxigênio dos meus pulmões, num inútil boca-a-boca. E a minha boca cerra entredentes poucas palavras perigosas, de combustão precisa ao mínimo descuido na floresta, o incêndio que aprisiono nesse deserto do lado de cá da janela.
Que venha então a ESFINGE com o seu enigma original. A resposta certa está aqui, na palma da minha mão. Mas não dou de graça a cinza do que se queimou dia após dia nas sombras desses dias estranhos. A esfinge não sabe. Mas já me devorou. E eu, como Fênix reinventada, renasci no embrulho do seu estômago. Incorporei suas enzimas, suas vísceras, seus espasmos. A crueldade compressora do seu estômago não foi capaz de fazer a síntese e permaneço antítese.
Assim caminho com OLHOS de águia sobre a espera e espicho de dentro da lagartixa o jacaré, que às vezes solto na beira do lago onde a esfinge repousa. O meu jacaré paira cinzento e se dilui na turva água do sono agitado da esfinge. Ele volta, na claridade do dia, com vestígios de lama, algas, peixe podre, retalhos de sonhos, palavras em decomposição e um olho pulsante. As palavras, reconheço, são as minhas. Penduro os outros vestígios no varal e deixo ao sol, junto com o jacaré.
Só o OLHO da esfinge, quando acordado, não se sustenta nesse meu varal esticado. Ele é escorregadio e ardiloso. Volta para o lago, para o corpo dormente que o reclama VIVO e INTEIRO, a alma da esfinge. Também reclamo a minha alma nua, sem véus, sem transparências de águas estrangeiras, com a inteireza do meu mergulho. Depois, posso naufragar como um barco furado e repousar tranquilamente no poço onde escavei o ouro do melhor da minha entrega.
Também estou como a ESFINGE, na superfície das águas. E danço em volta da fogueira onde ardem as minhas palavras e a verdade que brilha a um milímetro da lâmina da faca, mas ainda espera pelas palavras pronunciadas em audível som dentro do OLHO da esfinge.
Por enquanto, só porque o tempo é uma medida inexata nos portões do templo, eu ESPERO.

Cida Almeida - Goiânia, 21-6-2006.

terça-feira, maio 02, 2006

O anjo negro de ardilosa gentileza


Palavras dançam no fundo do espelho

A esfinge de novo me acordando para os detalhes onde mora o seu OLHO. Essa inquietude de dentro abrindo caminho para os espectros de cada palavra fora de lugar, dos sentimentos que não se ajustam à razão do texto das vontades desembrulhadas daquela emoção profunda que um dia subverteu a ordem das coisas. O OLHO que viu as fugas, que sentiu o vazio, a presença às vezes oca, que estranhou o brilho de alegria incontida e assistiu o baque no espaço das minhas tentativas de esmurrar a porta, a inexistente porta dos mistérios que se aninhavam comigo. Tantas vezes diante da esfinge impassível... Tantas vezes a figura do oráculo se impôs no horizonte do meu olhar... Nada vi e nem suspeitei, embora estranhasse os movimentos e não-movimentos. Mas como poderia, se meu olhar estava cativo por uma certeza cega que venerava como uma VERDADE de pé no chão. E tudo tremeu, e tudo ruiu, como um cristal precioso rodopiando os perigos de cada gesto e cada palavra nesse itinerário das máscaras que insistem em grudar como segunda pele. Raspo a minha pele no limite do sangue e deixo escorrer os fluidos de um tempo.
Ontem, de novo a esfinge, com o seu OLHO invadiu a camada mais profunda da minha noite. De novo me deu a visão de dentro. E me fez dialogar com um oráculo que vestiu a pele de um anjo negro. Ele me ouvia, sem querer, como que cumprindo um ritual de delicadeza por ter sido jogado na cena. Ele me disse que não estava vivo, que era de outro mundo. Mas já que iniciamos o DIÁLOGO, afrouxei a correia das palavras e deixei minha alma derramar um pouco das dores e confusão dos perturbadores pensamentos das cansativas vigílias. Os pensamentos imperfeitos, o caminhar em círculo, a batida do tambor sempre no mesmo compasso de sobressalto, as muralhas e os paredões onde ecôo como se estivesse em um beco sem saída.
A imagem do anjo negro e a forma como se abriu para o diálogo comigo, mesmo sem ser desse mundo. Em essência, Ele era ESCUTA. E sua imagem já trazia o significado. Antíteses vertiam de sua imagem, contando outros sentidos para essa enigmática aparição. O anjo negro, o que furou os olhos de um inocente anjo louro no berço, e deu de presente a sua imagem noturna de uma última visão, fixada fundo na memória, como um horror, como um pavor. Perturbador demais! O anjo gentil de alma cruel. E as antíteses do anjo ululam dentro da lembrança dessa noite estranha, desse sonho vagando nos sentidos da minha alma. E um outro sentimento claro é o de impotência, que aparece na figura do uso de um espaço inválido. Nesse encontro, a esfinge pisou fundo o indelével e o fugidio das palavras, e deixou suas marcas numa impressão de suas contra faces. Ela deixou a visão das palavras no fundo do espelho, salpicando-o de imagens e nomes para que não pairasse qualquer nuvem contra a clareza do ato de ver e ver o que não se quer, o que está escrito na alma e na pele desses dias que me arrastam e contra os quais luto sangrentamente para sair com a inteireza da compreensão. A esfinge, definitivamente, agarrou-me pelos tornozelos e os fios parecem invisíveis, mas estão cravados no mais profundo da boca do peixe que se recusa a ver a LUZ. Quero os sentidos da superfície. Mas o único caminho de passagem é o da ESFINGE. Vivo com a esfinge e os seus caminhos tortuosos me perseguem. Não há fuga e nem desejo de me opor. Convivo e sigo...
Goiânia, 2-5-2006.

quarta-feira, abril 26, 2006

NA IMENSIDÃO DO LAGO



Os OLHOS CLAROS da esfinge no BAILE de MÁSCARAS

E a correnteza das águas levando um carro desligado...


Uma tempestade, um carro desligado à deriva, uma aflição quanto a manter o controle da direção e a atitude de ligar o carro, EU e a ESFINGE no esconde-esconde dos sentimentos tortos e perturbadores, e a escapada do perigo para as sombras do BAILE de MÁSCARAS. E os OLHOS CLAROS da esfinge. Essa aparição da esfinge, beirando a perdição total, cravou em mim uma consciência de pressentimentos, aqueles que chegam de jeito inesperado para trazer à tona o que no fundo se sabe perfeitamente bem, mas não boiou na consciência como um peixe morto na superfície de um lago de águas aparentemente estáticas. A visão em movimento mexeu com os meus nervos e o meu olhar. Impossível ignorar as aparições do oráculo, seus avisos enigmáticos, as tabuletas na porta do meu templo particular. Um carro desligado sendo engolido pela voracidade das águas de uma tempestade inesperada, violenta, assustadora. Implorei ajuda, pedi com todo o desespero dos dias possíveis desmoronando às nossas costas, mas a recusa passiva me atingiu como um golpe no estômago. Mesmo com o carro desligado, os braços cruzados ante o que me devorava também por dentro e pelas beiradas, assumi a direção daquele veículo morto, como quem toma um remo frágil às mãos de um anjo atônito para duelar com as águas de um Posseidon de mau humor e que encontrou a diversão de um brinquedo momentâneo. Estranho, lembro agora, girei o volante à esquerda e já bem no centro das águas bravias assumi sozinha o risco do caminho mais perigoso, conscientemente o mais difícil... À esquerda, o caminho do coração. Não sei como, um cicerone estranho, familiar, surge do nada, após a turbulência, e faz uma estranha condução para o BAILE de MÁSCARAS. Uma movimentação lenta e sombria dominava o cenário e o espaço daquele inusitado salão, seres seminus transitavam incógnitos, com uns olhos que comiam fundo uma fome existente e transbordante no meu coração. Presságios, aflições e um desassossego antigo de ver e sentir o que não compreendia, o que não aceitava, mas contaminava a claridade dos meus dias à luz do SOL. Os OLHOS CLAROS da esfinge assumiram o controle do BAILE, e travestiram-se em um corpo familiar, ambíguo, numa simbiose perfeita para me dizer o NOME, com a casca e o miolo da compreensão. Os OLHOS da esfinge pousaram dentro de mim como os olhos de um predador altivo, acordando os enigmas dos meus dias possíveis de paraíso para a antítese do que julgava o correr tranqüilo do rio da minha vida. Às vezes sinto aquele BAILE, com todos os seus simbolismos, linguagens cifradas, enigmas, rodopiando dentro de mim e nos dias que seguem no remanso. Aqueles OLHOS que gritaram como um enigma de resposta óbvia dentro da esfinge ronda mais que os meus pesadelos, minhas convicções e certezas. Os OLHOS me mostram as sombras da claridade dos meus dias, a ausência, os cortes, as fugas, o não existente, os não-movimentos que circundavam as minhas procuras. Aqueles OLHOS lançaram uma centelha de inquietação que havia esquecido, ou pelo menos tentado esquecer. E essa minha inquietação duela com os OLHOS da esfinge, todos os dias. Difíceis OLHOS de alcançar o cerne da visão que diz TUDO. O ímpeto é chegar lá, arrancar esse olho profundo e deixar o LAGO que me contempla dentro dos OLHOS vazar, com os seres que às vezes bóiam e me contam partículas do MISTÉRIO que também dorme dentro do meu olho que vê e perscruta as grutas atrás de cada fenda...

Goiânia, 26-4-2006.

quinta-feira, abril 20, 2006

A menina perdida me encontrou


No caminho da esfinge
Encontrei uma menininha
Perdida ela choramingava
Os meus dias de perdição
Culpei a mãe
A filha da mãe da MÃE
E a menina estava perdida
De um jeito que nunca estive
Além do que sempre estive
A menininha que encontrei
No caminho da esfinge
Depois de uma conversa torta
Dentro de um baú escuro
Que apareceu no meio da minha sala
Estava perdida e quis me levar pra casa
Ela me levou com o seu choro antigo
Que escapou de dentro das minhas dores
As minhas dores recentes desses dias tristes
A menina que me encontrou
No caminho da esfinge
Andava de bicicleta
Longe do quintal de casa
Andava de bicicleta...
E eu nunca aprendi esse domínio
A andar de bicicleta
E a filha da MÃE
O meu primeiro pensamento
Mas de onde saiu essa menina?
Cismei que da conversa torta
De todas as portas
De todas as dores
ABERTAS
Cismei que dos seus olhos
Os mesmos que um dia me olharam
De viés, entre eclipses
De travesso, entre o pôr do sol
Afundando na linha do horizonte
Cismei que a menininha era a esfinge
Cutucando na profundeza do seu lago
Os peixes cegos do reino escuro
Que tentava trazer à luz da superfície
ENGANO
A menina perdida no caminho da esfinge
Que choramingava o seu choro triste
Os meus dias de perdição
Arrancou de dentro de mim
Todos os sentidos de direção
A paz do pertencimento
A minha própria companhia
E atirou tudo ao desassossego
E me arrancou a MÃE
A filha da mãe das minhas culpas
E as culpas que atirei à MÃE
Só em parte a menina
Que encontrei no caminho da esfinge
Tinha a sua alma e a sua face
Porque na essência ELA
Sou EU
Só EU
Minha solidão
Minhas dores
Minhas palavras
Meus cortes
Meus abusos
Meus absurdos
Essa viagem pelos mistérios da esfinge
Esse canibalismo autofágico
Essa tragédia verbal
Esse princípio do NADA
Essa insistência no escuro
Esse abismo à minha espreita
Essa janela aberta para o mundo
Essa imensidão de dentro
Tudo no princípio
No choro da menina perdida
A menina perdida que me encontrou
E que agora sou obrigada a colocar
No COLO
E afagar bem junto do meu peito
E chorar com ELA
E acreditar por ELA
Que tudo vai passar...
Que tudo vai passar...

Goiânia, 20-4-2006.

quarta-feira, abril 19, 2006

O toque do fogo


Toquei, sem saber, a árvore proibida. Cismei.
Viver com cisma é perder o paraíso, é ser tocado por um fogo ancestral, tribalístico, o acender da fogueira que brota de uma fagulha interna, de um descuido, de uma desatenção em algum momento em que algo resvalou e não percebemos. A esfinge me cutucou assim. Veio de forma reincidente, com o presságio das aparições do oráculo, que percebia como algo errado no horizonte, mas não via com consciência aquela intuição beirando um descontentamento, um desconforto. Sabia, só não tinha consciência. Nas primeiras vezes a esfinge chegou como uma friagem, uma aragem diferente, um calafrio, um sopro roçando os meus cílios. A esfinge chegou perto demais, mesmo assim eu não percebi a estranha visitante. Mas o seu OLHO pousou sobre mim de forma grudenta, um visgo invisível de muitos fios bloqueando meus movimentos e chamando a minha consciência, exigindo olhar atento. A esfinge visitou minhas palavras, como se me possuísse nas noites de sonho e pesadelos e amanhecesse comigo como vestígios impressos nos meus escritos. A esfinge ousou travestir-se com minhas palavras, postando-se à minha frente como placas luminosas, para um dia de sensibilidade e leitura gritante. Depois disso, a esfinge cravou o olhar perturbador no horizonte da minha alma, mas num ponto específico do meu coração montou um observatório lunático. Lembro de uns sonhos, desembrulhando pesadelos, em que a esfinge me levou pela mão ao mais alto das minhas quedas e dos meus medos e, imperturbavelmente, desatou os nós que eu não (queria) via. E não deu de graça. Exigiu o meu OLHO. Vieram as imagens, os simbolismos, os códigos secretos, a impossibilidade de tradução, as máscaras, as janelas e o OLHO, o de dentro e o de fora, e o além de tudo. A esfinge exigiu ATENÇÃO. Nesses dias tristes, estranhos e estagnados, aceitei a sua presença como uma companhia que me instiga a olhar, a perceber, a sentir fundo, a revolver, a decifrar e a devorar com palavras o que ainda não entendo. A esfinge está comigo e às vezes me assume, e em outras eu a ignoro e escondo. Mas ela ESTÁ. E isso independe de mim e das minhas vontades e não-vontades. Ela é paciente, fria como gelo, mas queima como fogo. O convívio com ela requer cuidados especiais, pois um contato longo e descontrolado pode significar necrose e amputações. Com a esfinge corro risco calculado e sigo esgueirando pelas fendas do seu caminho como um felino pronto a saltar fora de algo irremediável. Busco a decifração e não quero ser devorada mais do que possa compreender e aceitar. Deixo que ela me mostre os abismos, mas quero mesmo a superfície de terra firme e conhecida. Assumo com coragem o perigo das palavras que devoram esses dias tristes e estranhos. Com o meu OLHO fixo na JANELA em que busco o firmamento de um horizonte, o meu ENIGMA me chama e eu vou...

Goiânia, 19-4-2006.