Diálogos da Esfinge

Inicio aqui meus diálogos com a esfinge, afinando a escuta com o oráculo interior. Serei pergunta e resposta. Por vezes o silêncio, a lucidez e a loucura. Trocarei de papéis e de mistérios. Assim, caminho em direção à esfinge, despindo-me vagarosamente dos meus medos. E vou nua. Ao pé da esfinge, deposito o gesto e a intenção. Ergo os olhos e encaro o que me devora e não me apavora, nesse momento, essa fenda no abismo. Corro o risco da decifração. Eis-me aqui, nesses diálogos...

quarta-feira, junho 28, 2006

De sombra e escritura


Um tropel invade a noite que deixei estendida na janela. Recolho os passos que chegaram sem as rédeas de quem os domavam. Afago o animal exausto e sinto a carícia entre pêlos e suor, deslizando quente dos meus olhos. Espicho a escuta longe, longe, onde a esfinge espreita minha solidão e o vazio ecoando na sala. De novo, tropeço no enigma das palavras.
- Sinto muito sua falta!
- Não consigo viver sem você.
Dois punhais atravessados na minha garganta, estrangulando um grito medonho, que se perdeu de mim.
Estanco. Paraliso.
Mas VEJO:
O bloco das palavras escorregadias. Aperto os olhos e afino o olhar, até enxergar as duas frases petrificadas dentro do meu instante. A esfinge as deixa ali, sob meus olhos ardidos, como um enigma aberto à claridade seca do dia.
As palavras são cinza e cintilantes. E repousam absolutas em uma folha de papel de superfície tingida de preto. No topo da página, leio o que me fere, realçado pelo fundo negro, como se fosse o avesso de um carbono, de um filme, um negativo. Negro, carvão, luto, morte.
Mas o papel está rasgado. Como se um oráculo caprichoso quisesse ir mais fundo para me cutucar com vara curta. Provocativamente rasgou um pedaço da folha, até à base do incômodo texto. E a tira que falta forma uma letra invertida, onde vejo um V.
Claramente percebo a mensagem. A letra invertida suprimindo o V de Verdade ou o ato de VER, o verbo. Dobro a folha ao meio. Mas na hora não percebo o que se desenhou depois na minha mente. Ao dobrar a folha, o V assume a claridade do branco, vazio, sem fala, inerte.
Triste, a esfinge se repete. Já não me conta novidades. Decifrei o que não quis, o que já tinha me engolido por dentro, devorado nas entranhas e à flor da pele, todos os meus dias perfeitos. Dou chutes nas perguntas certas. Atiro-as para longe de mim e tento acertar o olho da esfinge. Não preciso mais das respostas nesse caminho de torturas, tonturas e loucuras.
Abro novamente a janela. E deixo entrar o que chegou depois de tudo... O meu ESPANTO!

Cida Almeida – Goiânia, 28-6-2006.

quarta-feira, junho 21, 2006

A esfinge no limite da faca





Emergiu plena de silêncio, a esfinge. O OLHO boiou na superfície do lago, trazendo novamente o corpo inadequado do mistério onde afoguei minhas palavras, a razão e todos os dias cegos. Os dias cegos que insistem na luz que vibra no enigma da esfinge. A luz cativa no olho da esfinge que vaza a minha alma, a loucura desbotada na janela. Dias frouxos e de esquecimento, desistência na beira do olho fundo, a fome que já me devorou inteira e eu vomito com desdém… A esfinge chegou novamente, de um jeito diferente, onde o que era alucinação virou lucidez e calma, como um cristal devolvendo ao sol o brilho que cega. Há muito arranquei meu olho sadio e atirei na fogueira das palavras em labaredas, onde queimava meu corpo e a minha alma. A chama da verdade ficou suspensa como a surpresa de um dia estranho em que perdi mais do que a inocência da fé. A FACA quente, limpa e afiada da verdade sumiu das minhas mãos, como uma aparição se apagando dentro de uma paisagem de gelo. Descobri que o gelo também queima. Pior que a queimadura de fogo, o gelo necrosa e a ferida não fica na casca. Que pulsação estranha nesse (re) encontro com a esfinge. A que sempre esteve dentro da aparente ausência, o OLHO crispando na minha nuca, espreitando por todos os lados e me esperando no dobrar do próximo passo. E os meus passos ficaram cautelosos e escorregadios. Olho para o chão onde imponho meus passos e recolho as vibrações. Sei que a esfinge é poderosa, mas não consegue me devorar inteira. Então, tenta me dividir e confundir. Às vezes fico solta, exposta como uma isca. Mas ela é astuta. Fareja e me refuga. Ela sabe que sou bicho. Um bicho ferido que não conseguiu arrancar dos flancos a lança e que se recusa a lamber a ferida. Mas OLHO no OLHO, uma porção ínfima de humanidade devorada dentro da esfinge vacila e só EU sou capaz de captar. E isso a deixa frágil e todos os meus medos me fortalecem. Na beira do lago e do fundo do OLHO onde emerge novamente a esfinge, espreito o movimento das águas, tateio de olhos fechados, mas sem cegueira, a ondulação das linhas da superfície que dará forma ao monstro. Levito e deixo a esfinge entrar nesse espaço aberto pelas palavras afogadas, cianóticas e inchadas. As palavras inertes que tento inflamar com o oxigênio dos meus pulmões, num inútil boca-a-boca. E a minha boca cerra entredentes poucas palavras perigosas, de combustão precisa ao mínimo descuido na floresta, o incêndio que aprisiono nesse deserto do lado de cá da janela.
Que venha então a ESFINGE com o seu enigma original. A resposta certa está aqui, na palma da minha mão. Mas não dou de graça a cinza do que se queimou dia após dia nas sombras desses dias estranhos. A esfinge não sabe. Mas já me devorou. E eu, como Fênix reinventada, renasci no embrulho do seu estômago. Incorporei suas enzimas, suas vísceras, seus espasmos. A crueldade compressora do seu estômago não foi capaz de fazer a síntese e permaneço antítese.
Assim caminho com OLHOS de águia sobre a espera e espicho de dentro da lagartixa o jacaré, que às vezes solto na beira do lago onde a esfinge repousa. O meu jacaré paira cinzento e se dilui na turva água do sono agitado da esfinge. Ele volta, na claridade do dia, com vestígios de lama, algas, peixe podre, retalhos de sonhos, palavras em decomposição e um olho pulsante. As palavras, reconheço, são as minhas. Penduro os outros vestígios no varal e deixo ao sol, junto com o jacaré.
Só o OLHO da esfinge, quando acordado, não se sustenta nesse meu varal esticado. Ele é escorregadio e ardiloso. Volta para o lago, para o corpo dormente que o reclama VIVO e INTEIRO, a alma da esfinge. Também reclamo a minha alma nua, sem véus, sem transparências de águas estrangeiras, com a inteireza do meu mergulho. Depois, posso naufragar como um barco furado e repousar tranquilamente no poço onde escavei o ouro do melhor da minha entrega.
Também estou como a ESFINGE, na superfície das águas. E danço em volta da fogueira onde ardem as minhas palavras e a verdade que brilha a um milímetro da lâmina da faca, mas ainda espera pelas palavras pronunciadas em audível som dentro do OLHO da esfinge.
Por enquanto, só porque o tempo é uma medida inexata nos portões do templo, eu ESPERO.

Cida Almeida - Goiânia, 21-6-2006.