Diálogos da Esfinge

Inicio aqui meus diálogos com a esfinge, afinando a escuta com o oráculo interior. Serei pergunta e resposta. Por vezes o silêncio, a lucidez e a loucura. Trocarei de papéis e de mistérios. Assim, caminho em direção à esfinge, despindo-me vagarosamente dos meus medos. E vou nua. Ao pé da esfinge, deposito o gesto e a intenção. Ergo os olhos e encaro o que me devora e não me apavora, nesse momento, essa fenda no abismo. Corro o risco da decifração. Eis-me aqui, nesses diálogos...

sexta-feira, março 31, 2006

A esfinge veio devagar


A esfinge veio devagar
Passos leves
E pegadas fundas
Na minha alma
Acordando um tempo
Mais antigo ainda
E profundo
De ver e de ouvir
E de tocar o passado
O tambor dentro de mim
A esfinge veio devagar
Num dia de crença absoluta
Ela pousou estranha
Na lucidez de um dia comum
E afundou os pés
Numa interrogação despretensiosa
E afundou âncora
E me levou pela mão
E pelo sentido contrário
A esfinge que veio devagar
Já vagava dentro de mim
Como uma noite anunciada
Sentia o seu hálito frio
Seus olhos invisíveis
Vasculhando a raiz
Dos meus pressentimentos
Umas mensagens soltas
Cutucando no fundo do meu olho
De dentro das minhas pálpebras
E sussurrava:
Abra, abra, abra...
Acorda, acorda, acorda...
E o tambor que vibrava dentro de mim
Marcava um ritmo de não-movimentos
Intervalos, silêncios e abismos
E negava
A porta
E negava
A chave
E negava
A fala
Do enigma
Que agarrava meus tornozelos
A partir daquele dia
O mergulho com a esfinge
Desatou o fundo de todas as perguntas
Que bóiam nas minhas palavras
As minhas palavras que cutucam
Os diálogos da solidão.
Goiânia, 31-03-2006.

quinta-feira, março 30, 2006

Minhas palavras devoram



O seu silêncio devora minhas palavras de difícil digestão.
DEVORA!
Minhas palavras
De difícil digestão
DEVORAM
O seu silêncio
E devoramos o cálice
A gota
O ácido
Que encharca
Minhas palavras e o seu silêncio
DEPOIS
Daquelas palavras
Engolidas pela esfinge
O silêncio
O mistério
A interrogação
O ácido
Corrói a corda
À beira do abismo
Eu e a esfinge
Olho no olho
Olho por olho
Olho dentro do olho
A lágrima
Que cai e vibra
No fundo do que não vejo
Como um diamante
No fundo do cálice
Incendiando a terra do meu sonho
Por dentro
De onde a esfinge
Espreita
Minhas palavras
E o seu silêncio
À beira do abismo
Minhas palavras devoram o seu silêncio de difícil digestão
E a esfinge permanece muda.
Goiânia, 29-03-2006.

A primeira fogueira

A primeira fogueira
Ardeu dentro das palavras
As palavras estrangeiras
Na minha alma sem suspeitas
Viciada às facilidades
E ao aconchego do paraíso
A primeira fogueira
Ardeu dentro de mim
Com o fogo
Das palavras estrangeiras
Que ainda hoje
Queimam a aguardente
Em que lavo os olhos
Na esperança de atingir
O olho perverso da esfinge
O mistério
Que se vestiu de silêncio
E intervalos
A primeira fogueira
Ardeu em minhas mãos
E queimou a magia inocente
Que se escondia
Dentro da cartola
Do meu amor
Molhado de paraíso
A primeira fogueira
Acendeu nos meus ouvidos
Uma estranheza
Umas labaredas
Umas palavras lambendo
Fogo
A primeira fogueira
Ardeu na minha boca
E todas as minhas palavras
Tremeram
Engoli o fogo
O princípio do incêndio
A primeira fogueira
Queimou meus olhos
A visão do paraíso
A primeira fogueira
Queimou
Todas as camadas
Das minhas crenças
E queimou um tempo
E plantou o fogo
Dentro de mim
A primeira fogueira
Que ardeu dentro das palavras
Das palavras estrangeiras
Que tremeram em minhas mãos
Na minha alma sem suspeitas
Trouxeram a primeira visão
Dentro do fogo
A esfinge
Imune às labaredas
Que ardiam
Dentro das palavras
Que queimavam a minha alma
Com o mesmo sal
Com o mesmo fogo
Com a mesma chama
Com a mesma natureza
Do incêndio que iluminou
As palavras que me levaram
Para o paraíso
As mesmas
Que ardiam ali
Naquela fogueira
De palavras estrangeiras
Devorando a intimidade
Sagrada do meu amor
A primeira fogueira
Queimou as palavras
As que eram minhas
As que abriam
Os portões do paraíso
E que guardava o meu segredo
O fogo
O manto sagrado
Das suas palavras
Que eram minhas
Cobriam outra intimidade
De palavras estrangeiras
A primeira fogueira
Queimou as palavras
Que ainda hoje
Ardem naquelas cinzas
Que rodopiam dentro de mim
A esfinge move-se
Além do fogo
Que neste instante
Acende a fogueira das palavras
Em que queimo minhas verdades.
Goiânia, 30-03-2006.

quarta-feira, março 29, 2006

No caminho da esfinge


No caminho da esfinge
As palavras soltas
Guardavam travas
Na ponta da língua
Os NÓS cegos
Invisíveis sentimentos
Caminhavam ao lado
E pousavam a mão
Do destino no meu ombro
Aqueles presságios
Queimavam meu coração
Mas eu já estava no caminho
Onde havia uma floresta
E a trilha batida se perdeu
Em algum passo desatento
Em algum passo feliz
Em algum momento exuberante
A floresta me engoliu
E me propôs a digestão
Do fundo do poço
Os calabouços
Em que encolhi
E recolhi
Palavras soltas
Que guardavam travas
Na ponta da língua
Os nós
Todos cegos
No caminho da esfinge
Agarrei-me aos rabichos
Daquelas palavras soltas
E forcei as travas
E cravei os dentes
Naqueles nós
E alguma essência
Ínfima e concentrada
Envenenou aqueles dias
Os meus sentidos
Os meus passos
Cada vez mais
Confusa
No caminho da esfinge
Que me puxava como um feitiço
E exigia decifração
Além do meu medo
Além das migalhas de pão
Dos meus passos na trilha batida
Refiz a coragem
E mergulhei no poço
Que se abria
Dentro de mim
No caminho da esfinge
Aprendi antes de tudo
A recolher
Os cacos do meu espelho
Misturados à lágrimas
E cortes
E a olhar fundo
Além das nuvens
Além das miragens
Além das linhas tortas
Das palavras soltas
Que encontrei e toquei
E fui tocada
Nos reflexos daqueles cacos
No caminho da esfinge
As travas
Os nós
Que estou aprendendo a soltar
Que estou aprendendo a desatar
Dentro de mim
A decifração
Que me devora
Com todos os sentidos
Das palavras
A compreensão
No caminho da esfinge
Que me chama
Como um feitiço
No fundo do espelho
Onde estou
AGORA
Só com a esfinge.

terça-feira, março 28, 2006

A fogueira das palavras a arder dentro de mim



A primeira impressão é a que fica
E ficou pra sempre
Essa chama incômoda
A arder sozinha
No lado esquerdo
Do meu peito
No avesso daquele dia
Em que ouvi
E vi o estranho
O sexto sentido
Estremeceu com força
O
primeiro sinal
O ALERTA
Do meu amor fora de mim
E minha alma deu um passo
Para trás de tudo

E encontrou o muro
O meu susto
A minha dor
De ouvir

(Verter)
Ver-te
SENTIR
Fora de mim
Tão longe
Mesmo perto
Na ponta dos meus dedos
As mesmas carícias de encontrar
A sua pele
Mas a sua alma
Que era comigo no paraíso
Saiu pra passear
Fiquei ali
Como uma fogueira
A arder imóvel
No pico do meu espanto
Daquele dia avesso
De ouvir
(Verter)

Ver-te
SENTIR
Outras delícias
Os presságios
Daquela chama
Em que vi
No fogo que ardia
Dentro de mim
Uma aparição relâmpago
A tormenta incendiária
Estranhei, sim
Os olhos febris
A embriaguez
O movimento
De outra intimidade
Feita de intervalos
Entre os meus dias plenos
De todas as carícias
Em que pousava
Cheia de certeza

A borboleta
Mas já haviam me roubado
As asas
E ruiu de dentro
E muito fundo

No olho daquele
Instante
A impressão
Em que ouvi
E vi
A inscrição da esfinge
Como grafite apressado
De linhas tortas

E vôo cego
Queimando como cal
A virgindade daquele muro
Que brotou do nada
Para dentro de mim
Uma fogueira de palavras
E desencontros
Na linha daquele dia
Com essa imprecisão
Ardida
Que às vezes escorre
E borra tudo
Quando eu choro.
Eu CHORO!
E a esfinge ARDE
Sempre dentro de mim
A fogueira daquele dia

E o assombro de todas as palavras
Que arremesso ao vento
Com todos os meus berros
Mas minhas palavras assombradas
Guardam uma essência de volta
Um traçado de bumerangue
Ziguezagueantes
Elas voltam
E alimentam a fogueira
Daquele dia dentro
E fora de mim.
(Goiânia, 28.03.2006)





sexta-feira, março 24, 2006

Minhas palavras que não lhe encontram



Acordei de madrugada
E pela primeira vez
(A PRIMEIRA)
Fui acordada
Por um tropel de palavras
Mas um tropel silencioso
E vago
Como passos de anjo
Num céu imaginário
Pela primeira vez
Minhas palavras voltaram
E voltaram para me acordar
E vieram de um jeito triste
Molhadas de uma tristeza
Sem explicação
Com uma delicadeza de sussurro
Sopraram nos meus ouvidos
Um choro miudinho
Que não sei de quem
Se meu
Se seu
Se de ninguém
Ou nosso
Ou do mistério de existir
Com um hálito frio
E um gosto de lágrimas
Minhas palavras que voltaram
Sozinhas e trêmulas
Levantaram as cobertas do meu sono
E deitaram-se ao meu lado
E pediram trégua!
Não disse mais nada
Nem em pensamento
Fiquei quieta
Com as minhas palavras
Que voltaram mudas
Minhas palavras
Estendidas comigo na cama
De uma madrugada incógnita
Aninhei-as
Como quem afofa o travesseiro
para reencontrar o sono
Num gesto quase natural
Entendi
Minhas palavras
Beijaram a boca
Do seu silêncio
O silêncio calou
Minhas palavras
E elas tremeram
Diante do mistério
Que me fez cometê-las
Aos pés da esfinge.

terça-feira, março 21, 2006

O calafrio que precede as grandes quedas



Lá está ele, aquele domingo emblemático e mordaz, como uma esfinge a circundar-me com seus mistérios; e aquelas portas que se abriram para um mundo interior e exterior que eu desconhecia. Foi apenas um esbarrão e em pouco tempo eu estava no fundo de um poço cheio de dúvidas e negações para situações tão obviamente ignoradas pela minha crença de que aquilo jamais aconteceria.
Mas aconteceu. Entre os dias que acreditava serem meus e também claros como a certeza que habitava o meu coração. E eram dias comuns e alegres, cheios de “eu te amo”, febre emocional, entrega cega, saudades insanas, escrituras do paraíso e ilusão de entrega.
E aquele esbarrão que até hoje dói na minha alma foi só o começo de uma lucidez desorientada e outras histórias carregadas do mistério original. Por isso, ainda me vem, em certos dias, o calafrio daquele domingo que virou a minha vida pelo avesso.
Tenho outra idéia fixa, mais dolorida do que aquilo que comecei a viver naquele domingo: pensar que poderia não ter escavado aquele mistério tantas vezes sondado e continuado com os meus dias plenos de uma falta que devorava tudo por dentro, sem que tivesse a chance de entender ou estancar, minhas dores e meus gritos, que fossem!
E como doeu encontrar as respostas certas para aquelas perguntas que nenhuma esfinge plantada dentro de mim ousaria sussurrá-las no pior dos meus pesadelos! Tonta, ainda, por aquela queda livre e inesperada, agarrei o fio se desfazendo antes da resposta, batendo-se em retirada e recolhimento, feito momentos-conchas que sempre me intrigaram, e fui fundo.
- Por que não me disse antes?
- Porque não perguntou.
- Perguntei, sim, várias vezes, de várias formas...
- Talvez nunca tenha perguntado desse jeito.
- Desse jeito como?
- Assim. Talvez nunca tenha feito a pergunta certa.
- Meu Deus, que frio é esse que ainda hoje me percorre a espinha, como um calafrio!
Aquela tarde de domingo virou uma noite densa, estilhaços sob meus pés descalços e um choro de arrebentação. Nunca vou esquecer aquele momento em que me perdi; rasguei a pele como quem destrói uma roupa, uma fantasia... Varei dias, noites, choros, desesperos, convulsões e encolhimentos, e uma ciranda na minha cabeça com aquela descoberta: perguntas certas.
Empurrada pela situação, pelos movimentos e não-movimentos, caminhei decididamente em direção à esfinge. E avisei: só paro quando chegar ao fundo. Mas tive o cuidado da lição das respostas certas antes de todas as perguntas. Que tormento, descobrir respostas para perguntas além do nosso entendimento! Parei e prestei atenção a todos os sinais, as linhas tortas de um texto antigo e confuso, entrelinhas, movimentos e não-movimentos. Os silêncios me contaram mais coisas do que todas as palavras cometidas. Fui fundo, como havia prometido, e com tudo, consciente e inconscientemente. Até meus sonhos viraram uma espécie de oráculo nesse diálogo torto e sem cabimento com a esfinge. E eu que pensei que já havia transcendido esse negócio de matar o pai e comer a mãe, de repente me vi sob o guarda-chuva da intimidade do mistério. Também encontrei sujeitos ocultos e orações inominadas e móveis deslocados na sala. Não gostei, nenhum pouco, da sensação do chão fugindo aos meus pés e de me ver sozinha numa luta esquisita em um tatame duro onde recolhi verdades tiradas a força, no limite da exaustão. Já que era irremediável mesmo, essas verdades poderiam ter vindo naturalmente, numa generosidade perversa, mas espontânea naquele processo de cadeado arrebentado.
Se tivesse o direito da escolha, preferiria mil vezes a faca limpa, afiada e quente da verdade. Até hoje não entendi direito a razão de tudo isso, aquele momento em que algo que julgava bom e inteiro desejou pular os portões do paraíso. Julgo, hoje, que o paraíso era uma fantasia minha.
Tive momentos de vagar, desamparada, à procura da minha perda, que permanecia ali, impassível, ao alcance do meu toque. Mas sempre tão ausente, em outra rotação e a imagem dos braços cruzados é muito forte no itinerário da esfinge e do mistério. Hoje vejo e entendo claramente que jamais seria ouvida naquele estado de encantamento. Cometi todos os excessos de todas as palavras, vãs tentativas ao vento... Cheguei ao delírio de escrever tratados, quando meu silêncio bastaria. E fui entregue de bandeja, cabeça e coração. Mas sei que sou uma pessoa de coragem densa e no meio do caminho ousei dinamitar pontes e destruir abrigos e segui patinando em gelo fino e em direção às tempestades. Não me perdoaria a tentação de querer voltar ao aconchego de algum lugar que não mais me pertence ou não comporta o espelho novo construído com os cacos das verdades que recolhi dentro dos meus olhos, que ficaram ali, estendidos no chão. Insisti, num ponto, a VERDADE.
E as perguntas que trago comigo são inevitáveis. Mesmo que encontrem a resistência do rochedo e voltem aos meus pés, cometerei todas como quem pratica crimes bárbaros. Não quero bússola, apenas a intuição para decifrar o enigma do que está dentro e o que está fora. Aprendi uma língua nova atrás do silêncio. Às vezes não gosto do que se revela nesse silêncio que aprendi a ouvir. Mas caminho pelas ruas desse país enigma dentro e fora de mim, pensando que um dia conseguirei caminhar pelas ruas da estranheza com desenvoltura e coragem.
Sobrevivi àquele domingo e escolhi seguir descalça pelo caminho onde as areias são quentes e movediças. E isto está me transformando. Nesse caminho me seduz as espirais que desço atentamente pensando na subida, e não sei se do fundo do meu desejo nasce uma companhia, sinto o seu hálito quente e a respiração ofegante, de alguém que chegou apressado em cima da hora... Sigo e dentro do meu silêncio vibra um desejo de que essa presença seja real. Sigo... Não sei se só. Mas sigo.

segunda-feira, março 20, 2006

O Enigma do Guarda-Chuva (o primeiro encontro com o oráculo)


Era uma noite sombria e confusa, recortada e entrecortada por imagens e figuras de sonhos, a esfinge me chamando pra dentro de mim. Segui o seu primeiro chamado, como uma criança perdida que se deixa levar pelo breve encanto do flautista mágico. Mas era um sonho sem magia do bem, onde um oráculo triste me esperava na porta principal e silenciosamente me entregava um guarda-chuva. Vi naquela figura estranha e mal compreendida do oráculo algo de mim se perdendo, se concretizando naquela perda que eu não havia reconhecido, me chamando desesperadamente no fundo daquele silêncio feito de quedas e abismos, uma espiral afunilada até o limite de um buraco de agulha onde teria que passar com todos os meus camelos e cismas. Essa certeza me segurava ali, com aquele guarda-chuva na mão e o coração pesado de medo e dúvidas. Segundos eternos de sobressaltos, eu e o oráculo antes da esfinge... Tive um desejo de cinzas e me vi queimando nessa recusa diante do portão daquele mistério que me levou até o oráculo. O meu primeiro encontro com o oráculo foi silencioso, formal e triste. A decisão era minha. E aquele momento-enigma estava repleto das encruzilhadas que nos arremessam para a DECISÃO. Abrir o guarda-chuva seria o primeiro passo, o reconhecimento de que coisas estranhas aconteciam no paraíso, o princípio da perda. E o oráculo me olhava de uma maneira dura, impositiva, exigindo pressa e coragem, ou fuga. Devolvi o olhar com um silêncio ávido de respostas e chutei minhas perguntas o mais fundo que pude pra dentro daquela espiral que o oráculo me mostrava – meu Deus, depois teria que escalá-la, me agarrando aos seus nós para não me perder de vez em seus pontos nebulosos e escorregadios. A criança perdida e confusa, que antes ouvia uma estranha e sedutora música, que não combinava com nada e destoava da paisagem de todas as minhas vigílias, assumiu ares de semideus, arrogante diante daquele mistério que o guarda-chuva propunha revelar. Peguei com quase fúria aquele guarda-chuva imenso e num impulso avancei o portão e ainda vi o oráculo atrás de mim, calando todos os avisos que precedem uma hora assim. Como um cavaleiro medieval empunhei aquele guarda-chuva como se fosse uma espada contra mim que eu tivesse que domar com sabedoria, longe do corpo mas na altura da cabeça, estendi aquele pássaro negro na atmosfera daquela noite densa, daquele estranho país para onde tinha fugido a minha alma. Com a decisão que o oráculo exigia de mim do fundo daquele olhar triste, fiz o gesto esperado e só vi o pano negro daquele mistério se abrir sobre mim como as asas de um pássaro. Instintivamente, levei uma das mãos ao peito, buscando apalpar o meu coração. Algo estremeceu dentro de mim e me veio uma aflição, um desconforto, o princípio de uma falta imensa e insana. Outra decisão que tive que tomar naquele instante-ampulheta, areia quente escorrendo pra dentro de mim, num tempo que só eu compreenderia as forças de sua regência e aquele deserto que se abria na minha janela (o sempre pra dentro da casa era um país estrangeiro), era me abandonar ali, o coração pulsando de medo e de fúria, e seguir o mistério grudado dentro das asas do guarda-chuva. Mais um passo, um movimento arrogante de semideus, e entreguei-me ao guarda-chuva no território estranho daquele PAÍS onde não havia sinais de chuva. Entendi que a função do guarda-chuva não era me proteger – e isso descobri sozinha, sem qualquer sinal do oráculo –, mas me expor sem qualquer traço de piedade, com a crueza de todas as visões. Deixei meu coração do lado de fora daquele portão e me vi exposta sob as asas-manto daquele guarda-chuva que não iria me proteger de nada, mas levar-me ao limite do abismo de todas as quedas com os seus mistérios. Podia ouvir meu coração batendo descompassado lá fora, talvez temendo ou antevendo que não haveria resgate possível ou retorno àquele momento antes da areia escaldante daquela ampulheta começar a tilintar na minha consciência, e eu sob o princípio da revelação. Agora que entrei, que estou dentro, ouço algo que o oráculo me avisou com o seu silêncio: veja tudo e guarde; seja breve e precisa na visão; não procure entender agora, só recorte e guarde de um jeito só seu e que só você ache; rápido, veja, leia, não compreenda, guarde na memória desse sonho o que for possível e, mais que tudo, guarde lá dentro do seu coração, o que ficou lá fora, o impossível; veja, lhe dou os sinais do enigma em letras douradas, garrafais; não se apegue à forma, não se engane com o que não é essencial, não se perca, olhe, olhe, olhe; até à exaustão, olhe, olhe, não veja agora, não procure entender agora, o instante não comporta; Agora que olhou, sinta, sinta, sinta... Deixe que o mistério lhe toque; não toque nada, deixe que o mistério lhe possua e lhe conduza nestes sinais iniciais; veja, lhe dou agora uma chuva de palavras, de letras góticas e douradas, mas não se engane e nem se perca dentro deste guarda-chuva que não lhe guarda de nada, apenas expõe, o que é de dentro e de fora. Lembre-se: o seu coração está lá fora e precisa ser resgatado, cuidado dessas visões que cegam e turvam as águas do sentimento; VOLTE e respire, respire, respire...
Acordei dentro do banheiro, com a torneira aberta, com uma sensação de ter voltado das sombras da morte. Morri sim, por muitos instantes, mas voltei com uma lucidez absurda e alguma compreensão para uma leitura dolorida de mim. Girei a chave dentro do buraco do mistério. Abri um guarda-chuva cheio de enigmas. Renunciei a qualquer ilusão de proteção, de paraíso e de consolo. Estive, momentaneamente, em um país escuro, sombrio e vim com uma centelha de luz guardada na palma da mão. Abro a mão e essa luz não se confunde com a luz do dia, com a claridade aparente do lado de cá. Esse encontro misterioso com o oráculo e o enigma do guarda-chuva e a centelha de luz que trouxe desse país estranho são os elementos que estendo na linha do horizonte da consciência. De novo, ouço o silêncio do oráculo: não se engane, não queira entender agora, não se perca no instante que não comporta precipitações, apenas sinta e guarde a sensação desse sentir, mesmo que eu lhe dê o nome, não pense, arrogantemente, que lhe dei o nome do mistério e a sua chave eterna, não se ENGANE, pois o seu coração ainda está lá fora...
Depois do chamado do guarda-chuva outros encontros com o oráculo aconteceram com a fúria das águas, a sedução das máscaras e de novo a descida da espiral. Mas o meu coração ainda está lá fora, não esqueço do aviso silencioso pregado na tabuleta desses dias de difícil reconhecimento. E respeito isso!

sexta-feira, março 17, 2006

A falta


Hoje tropecei no seu coração
A mesma pedra pontiaguda
O mesmo urro...
Encolho dentro de mim a fala
De um tempo sem sentido
E recolho o eco da dor
De sua ausência
Com cuidado
Quase devoção
Arremesso pela janela
(Com fúria)
O meu urro e a sua ausência
E já não sei o que fazer de mim!

Hoje tropecei...
A pedra
(Pontiaguda)
O urro
O seu coração!

Tropecei...

quinta-feira, março 16, 2006

Entre pergunta e resposta, o mistério





















O que se perdeu
entre pergunta e resposta
está perdido, partido...
Os meus sentidos cheios
de nunca mais
de uma metade que me falta
e me sufoca com ausência
ressentida...
O que se perde (ainda)
entre pergunta e resposta
vacila no silêncio
fora de mim
e eu ouço...
O que se perde
de tão perdido dentro de mim
já não me encontra
no balanço da gangorra
e só eu sinto...
O que se perdeu
O que está perdido
O que se perde ainda
Entre pergunta e resposta
Contempla a face da esfinge
Que sou EU
Que só EU
Que EU
No NUNCA mais
Da METADE que me falta
E era o TODO que me completava.
Entre pergunta e resposta
Vejo a metade ausência
Mesmo que ainda dentro de mim
O que se perdeu
O que está perdido
O que se perde ainda
Paralisa o tempo
Do meu amor dentro de mim
Do meu amor fora de mim
Entre pergunta e resposta
Entre não-perguntas e não-respostas
Um QUASE
Um QUANDO
Um AGORINHA mesmo
Do meu amor dentro de mim
Do meu amor fora de mim
O tempo todo a contemplar
Os mistérios de se perder
Os mistérios de se encontrar
A metade que me falta
Na face da esfinge
Murmura impassível
sem perguntas e sem respostas
A falta que me faz
Nesse silêncio
Aquilo que era só meu
Meu EU
O que se perdeu
O que está perdido
O que se perde ainda
É o que se cala
Nesse diálogo da esfinge...
E é um diálogo partido
Um DIÁLOGO partindo
Um diálogo me partindo
E o mistério é que me calo
Quase me parindo
Com minhas palavras
Embrulho os silêncios desse diálogo
E os deposito com cuidado
Aos pés da esfinge
Que CONTINUA...
Perguntas e respostas
Não-perguntas e não-respostas
Sem perguntas e sem respostas
A esfinge silenciosamente
Cala dentro de mim
O mistério partido
Da metade que me falta
E me COMPLETAVA.

Goiânia, 16-3-2006.

Diálogos da esfinge - parte I

Confissão

! Confesso. Nunca vivi um momento tão delicado e que inspirasse tanto cuidado como o que estou vivendo agora. Já estive algumas vezes diante de algumas esfinges, mas nunca dessa forma tão diluída e ao mesmo tempo tão concentrada. É como se de repente eu me deparasse com o oceano contido dentro de uma gota e essa gota guardasse o poder absoluto de me devorar com seu toque de sal, mistérios e a tormenta das perguntas. Enxergo a esfinge sem vê-la; toco-a em seu corpo etéreo e vago, e temo e tremo, com todos os meus medos antigos e recentes e os que ainda hei de sentir; escuto todas os seus enigmas, mesmo que do fundo do mais absurdo e inaudível sussurro; e fico assim, horas a fio, fora de órbita, gravitação estranha na minha alma, e esse carrossel de doloridas emoções em que o espelho de agora exige mais do que retoques, um jeito novo de perder ou abandonar a casca, a couraça, as armaduras. E me vejo assim, exposta, frágil como na música do Sting. Dependendo, pensar dói demais. E apesar da dor, não tem em mim qualquer movimento de recuo. Deixo solta em mim a criança curiosa e ávida diante de uma imensidão de embrulhos. Corro todos os riscos. Caminho, decidida, em direção à esfinge, despindo-me vagarosamente dos meus medos. E vou nua. Ao pé da esfinge, ou de mim mesma, deposito o gesto e a intenção: derramo a porção restante do vidro de alfazema; atiro no chão aquele pedaço de espelho em que resguardei a essência da minha alma e identidade; derreto todos os meus soldados de chumbo; ergo os olhos e encaro o que me devora e não me apavora, nesse momento, essa fenda no abismo. (27-5-2005).